Ciber-Socialidade.
Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea.
Resumo.
Esse artigo pretende analisar as novas formas de socialidade emergentes com as tecnologias do ciberespaço. As diversas manifestações da cibercultura contemporânea como por exemplo a efervescência social da Internet; as comunidades virtuais; as festas "rave"; o "underground high-tech" com os "hackers", "crackers", "cypherpunks" e outros "cyberpunks"; o misticismo dos "zippies", etc., exprimem o encontro das tecnologias digitais com a socialidade contemporânea (Maffesoli). A tecnologia, que foi durante a modernidade um instrumento de racionalização e de separação, parece transformar-se numa ferramenta convivial e comunitária. O objetivo desse artigo é mostrar como as noções que definem a socialidade contemporânea tais como tribalismo, presenteísmo, vitalismo, ética da estética e formismo podem explicar o fenômeno da cibercultura e nos ajudar a compreender o que proponho chamar de "ciber-socialidade".
Introdução.
Para compreendermos os impactos das novas tecnologias na cultura e na comunicação contemporâneas devemos dirigir nosso olhar para a sociedade enquanto um processo complexo e sempre inacabado entre formas e conteúdos. A partir de uma influência reconhecida do sociólogo alemão G. Simmel, é isso o que nos propõe Michel Maffesoli na sua análise da vida quotidiana. Tentaremos aqui, a partir da perspectiva formista simmeliana, mostrar a dinâmica sócio-técnica que se instaura nesse final de século misturando, de forma inusitada, as tecnologias digitais e a "socialidade" pós-moderna, formando o que chamamos de cibercultura.
Afim de compreendermos melhor essa cibercultura planetária, vamos tentar mostrar como conceitos maffesolinianos tais como tribalismo, presenteísmo, vitalismo e formismo, marcas indiscutíveis da "socialidade" contemporânea, podem ser aplicáveis para descrever a relação entre as novas tecnologias e a sociedade contemporânea. Esses "mini-conceitos", como gosta de chamar o sociólogo francês, vão pontuar todos os campos da cultura contemporânea, não só a cibercultura com suas comunidades virtuais, jogos eletrônicos, imaginário cyberpunk, cibersexo, realidade virtual e ciberespaço, mas todos os acontecimentos cotidianos, todas as formas de agregação (banal, festiva, esportiva, midiática) que marcam as sociedades contemporâneas. Como mostram diversos sociólogos (clássicos e contemporâneos) é a "atração social", o sentimento de "estar junto" o verdadeiro cimento de toda vida em sociedade.
A Socialidade Contemporânea.
A obra de M. Maffesoli é decisiva para uma abordagem fenomenológica da sociedade contemporânea ocidental. Como proponho, o conjunto de conceitos que compõem a socialidade maffesoliniana nos ajudará a compreender os fenômenos recentes da cultura eletrônica global cujo fetiche mais premente é a Internet (sem falar do multimídia de massa, dos "tamagotchi", dos "objetos que pensam" - MIT, dos "cyborgs", etc.).
Como sociólogo da vida quotidiana escolhemos partir para uma abordagem fenomenológica, evitando assim os "a priori" do conhecimento (Kant) e buscando olhar os fenômenos sociais como eles aparecem à consciência. A fenomenologia do social pode nos ajudar a compreender a cibercultura já que ela, como afirma Lyotard, dedica-se aos "études de phénomènes, cest à dire de cela qui apparaît à la conscience, de cela qui est donné. (...) car expliquer le rouge de cet abajour, cest précisément le délaisser en tant quil est ce rouge étalé sur cet abajour".
Assim, compreender essa cultura que emerge de uma relação inédita entre a técnica e o social sem os "a priori" que fundamentalmente perseguem todo o fenômeno técnico, torna-se imprescindível para que possamos mostrar (mais do que demostrar) como a cibercultura se dá à consciência. Nesse sentido a sociologia maffesoliniana é uma fenomenologia do social que tem por objetivo olhar aquilo que é dado, aquilo que "é", e não aquilo que "deve ser". Ele vai insistir assim na descrição das formas atuais das relações sociais. A ênfase da sociologia maffesoliniana está nessa descrição do social "... tel quil se donne". Essa perspectiva vai influenciar a nossa análise não exclusiva da cibercultura.
Uma influência também marcante da "socialidade" maffesoliniana situa-se na sociologia da forma apresentada nos trabalhos do sociólogo alemão G. Simmel. Essa perspectiva formista poderá nos ajudar a melhor compreender a ciber-socialidade. As formas (institucionais, simbólicas, técnicas) de uma cultura visam enquadrar a vida, regulá-la, controlá-la. Para o "formismo" de Simmel, a vida se impõe sempre contra os limites da forma. A vida necessita da forma para existir, da mesma maneira em que ela deve estar expandindo-se para além das formas para "ex-istir". É nesse embate, nesse conflito entre formas e conteúdos, que se enraíza para Simmel o trágico da sociedade.
A forma seria uma "matriz" que preside o nascimento e a morte de diversos elementos da vida em sociedade. A forma seria então "formante", não só rigidez (invólucro) mas princípio ativo da vida. Como mostra Simmel as formas sociais são o invólucro "dont cette vie shabille, comme la manière nécessaire sans laquelle la vie ne peut entrer dans le phénomène, sans laquelle elle ne peut pas être vie spirituelle". A evolução das formas da cultura se estabelece assim, num processo paradoxal entre a vida, que quer superar suas formas (que é a possibilidade mesma de "ex-istência" da vida) e essas últimas, que revestem a vida e que tendem à cristalizá-la no tempo.
Para Simmel, e aí está a idéia de vitalismo social presente nos trabalhos de Maffesoli, a fecundidade (ou seria necessidade?) da vida obriga as formas a se reconstituir num processo contínuo. A forma teria assim duas funções contraditórias: ela é ao mesmo tempo suporte e prisão da vida. As formas de uma determinada sociedade vão cristalizar-se em objetos técnicos, nas instituições e no imaginário (religião). Essas tendem a desenvolver-se de maneira autônoma e independente e não é atoa que os objetos técnicos cativam mais pela forma que pelo conteúdo (os gadgets), que as instituições esclerosam à morte na rigidez e conservadorismo de suas formas, ou a religião estabelecendo seus dogmas imutáveis. Toda forma tenta estabelecer sua permanência temporal. A cultura se realiza, segundo Simmel, nessa tragédia, como processo de objetivação do sujeito e de subjetivação dos objetos, como sinergia entre formas e conteúdos.
Partindo dessa visão ao mesmo tempo fenomenológica e formista do social, Maffesoli tenta descrever aquilo que segundo ele vai marcar a atmosfera das sociedades ocidentais contemporâneas: a "socialidade". Ele mostra como o conceito de socialidade é definido em oposição àquele de "sociabilidade". A "socialidade" marcaria ("daria o tom") os agrupamentos urbanos contemporâneos, colocando ênfase na "tragédia do presente", no instante vivido além de projeções futuristas ou morais, nas relações banais do cotidiano, nos momentos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de todo dia. Isso a diferencia da sociabilidade que se caracteriza por relações institucionalizadas e formais de uma determinada sociedade. Maffesoli procura então olhar "a vida como ela é", como diria Nélson Rodrigues (aliás, ambos investem numa perspectiva erótica do social, na tragédia do presente).
A socialidade é para M. Maffesoli um conjunto de práticas quotidianas que escapam ao controle social rígido, insistindo numa perspectiva hedonista, tribal, sem perspectivas futuristas, enraizando-se no presente. As relações que compõem a socialidade constituem o verdadeiro substrato de toda vida em sociedade, não só da sociedade contemporânea, mas de toda vida em sociedade. São os momento de despesa improdutiva, de engajamentos efêmeros, de submissão da razão à emoção de viver o "estar junto" que agrega determinado corpo social. Assim, é a socialidade que "faz sociedade", desde as sociedades primitivas com seus momentos efervescentes, ritualísticos ou mesmo festivos, até as sociedades tecnologicamente avançadas com sua barroquisação através das imagens.
A socialidade é essa multiplicidade de experiências coletivas baseadas não na homogeneização ou na institucionalização e racionalização da vida, mas no ambiente imaginário, passional, erótico e violento do dia a dia, do cotidiano do "homens sem qualidade" (Musil). Maffesoli mostra que existem momentos de uma determinada sociedade que uma forma vai exprimir melhor uma determinada cultura. Assim foi, por exemplo, a forma institucionalizada da modernidade. Em outras, como na sociedade contemporânea, é a socialidade, logo o não institucional e o tribal que se sobressai. A socialidade contemporânea vai se estabelecer então como um politeísmo de valores onde nós "atuamos" desempenhando papéis, produzindo máscaras de nós mesmos, agindo numa verdadeira "teatralidade quotidiana". É no cotidiano, locus da prática dessa "teatralidade" através dos diversos papéis que encarnamos nas situações plurais do dia a dia, que nós podemos "ex-ister" (ser, no sentido de "sair de si"), sem sucumbir aos imperativos de uma moral ou de uma racionalidade implacável.
As diversas manifestações da sociedade contemporânea mostram o esgotamento dos meta-relatos da modernidade e da idéia de futuro. A vida quotidiana contemporânea vai insistir na dimensão do presente; num presente caótico e politeísta, caracterizando um primeiro conceito chave da socialidade: o "presenteísmo", a ênfase no presente em detrimento de perspectivas futuristas. A socialidade não seria assim contratual, no sentido dos engajamentos políticos fixos ou à classes sociais definidas e estanques. Ela seria efêmera, imediata, empática.
Maffesoli dá vários exemplos dessa socialidade presenteísta nas suas análises da sociedade contemporânea (agrupamentos urbanos, festas e rituais, moda, tecnologia, mega-eventos esportivos, etc.). A socialidade encontra sua força na astúcia das massas, marcada por uma espécie de passividade ativa, intersticial, subversiva, e não por um ataque frontal de cunho revolucionário. Este comportamento rizomático (Deleuze e Guattari), esguio e efêmero, vai marcar profundamente a cibercultura. Como afirma um "zippie", um dos expoentes dessa cibercultura: "antes de lutar contra o sistema, nós estamos ignorando-o".
Entretanto, se não existe mais uma unidade do social isso não significa uma desagregação radical, nem tão pouco o isolamento patológico. Como afirma Maffesoli, se não podemos mais falar de unidade (fechada, acabada, objetiva e instrumental) do social, a análise da vida quotidiana nos permite ver uma certa unicidade ("unicité"). A unicidade se traduz como uma união holística, como um processo em que elementos os mais diversos agem em sinergia dentro de uma mesma forma "formante".
Maffesoli mostra no conjunto de seu trabalho como a modernidade insistiu numa assepsia social marcada pela racionalidade instrumental das suas mais diversas instituições. Ela buscava domesticar (ou mesmo aniquilar) as "imperfeições" (tidas como escorias sensoriais a partir de Descartes) da vida, como as emoções desmedidas, a violência e o imaginário simbólico. No entanto, a contemporaneidade, insiste M. Maffesoli, vai ser marcada por um imaginário dionisíaco (sensual, estético, tribal) que vai muito além das prerrogativas puramente instrumentais. Podemos identificar exemplos nas diversas situações que marcam a cadência das ações minúsculas do presente.
A técnica, paradoxalmente, vai desempenhar um papel muito importante nesse processo. Ao invés de inibir as situações lúdicas, comunitárias e imaginárias da vida social, as novas tecnologias vão agir como vetores dessas situações. A forma técnica é obrigada a negociar com o social. Podemos falar numa espécie de transformação da apropriação técnica do social, típica da modernidade, para uma apropriação social da técnica, mesmo que de forma complexa e imprevisível. Vários sociólogos da técnica mostram como esse segundo movimento de apropriação é freqüente no processo tecnológico de uma cultura, mas que parece radicalizar-se no limiar do século XXI. Entramos assim na cibercultura.
Vejamos o ciberespaço. O ciberespaço é, enquanto forma técnica, ao mesmo tempo, limite e potência dessa estrutura social de conexões tácteis que são as comunidades virtuais (chats, muds e outras agregações eletrônicas). Em um mundo saturado de objetos técnicos será nessa forma técnica que a vida social vai impor o seu vitalismo e reestruturá-la. As diversas manifestações contemporâneas da cibercultura podem ser vistas como a expressão quotidiana dessa vida "tecnicizada" que se rebela contra as formas instituídas e cristalizadas (lembramos que o ciberespaço é fruto de pesquisa militares). A forma técnica molda-se ao conteúdo social, não sem conflitos.
Segundo Maffesoli, e aí está mais um conceito importante para compreendermos a socialidade, nós estaríamos assistimos hoje a passagem (ou a desintegração) do indivíduo clássico à (na) tribo. A erosão e o esgotamento da perspectiva individualista da modernidade são correlatos à formação das mais diversas tribos contemporâneas (fenômeno mundial). Através dos diversos "tribalismos" contemporâneos, a organização da sociedade cede lugar pouco a pouco, à organicidade da socialidade, agora tribal e não mais racional ou contratual. Se na modernidade, afirma Maffesoli, o indivíduo tinha uma função, a pessoa ("persona") pós-moderna tem um papel, mesmo que efêmero, hedonista ou cínico. Para Maffesoli, a lógica individualista se apoiou sobre uma identidade fechada, sobre o indivíduo pertencente a uma família, classe, regime militar e igreja específicos, enquanto que a "persona" só existe em relação ao outro. É por isso que a "persona" tem necessidade da tribo para se construir com o outro, pelo outro e no outro. O indivíduo é assim "poussé par une pulsion grégaire, il est, lui aussi, le protagoniste dune ambiance affectueuse que le fait adhérer, participer magiquement à ces petits ensembles visqueux que jai proposé dappeler tribus".
Estaríamos vendo hoje, através dos diversos tribalismos contemporâneos (religiosos, esportivos, hedonistas, musicais, tecnológicos, etc.), um surgimento das "solidariedades orgânicas" (Durkheim), das "comunidades emocionais" (Weber), da "reliance" (Bolle de Bal). O tribalismo refere-se à uma vontade de "estar-junto" ("être-ensemble"), onde o que importa é o compartilhamento de emoções em comum. Isso vai formar o que Maffesoli identifica como uma "cultura do sentimento", formada por relações tácteis, por formas coletivas de empatia. Essa cultura do sentimento não se inscreve mais em nenhuma finalidade, tendo como única preocupação, o presente vivido coletivamente.
Maffesoli propõe analisar esta nova "ambiance" comunitária pós-moderna a partir do que ele chama de "paradigma estético". Para Maffesoli, a socialidade tribal, gregária e empática contemporânea, que se apóia sobre as multi-personalidades (as máscaras do teatro cotidiano) age a partir de uma ética da estética e não a partir de uma moral universal. A sociedade elaboraria assim um "ethos", uma maneira de ser, um modo de existência "où ce qui est éprouvé avec dautres sera primordial. Cest cela même que je désignerai par lexpression: éthique de lesthétique". Esta "ética da estética" vai impregnar todo o ambiente social e contaminar o político, a comunicação, o consumo, a publicidade, as empresas, ou seja, a vida quotidiana no seu conjunto. A ética da estética é assim mais um conceito chave para nos ajudar à melhor discernir sobre o conjunto desordenado e versátil daquilo que M. Maffesoli chama de "socialidade".
A explosão da comunicação contemporânea deve-se aos novos media que vão potencializar essa pulsão gregária, agindo como vetores de comunhão, de "reliance" comunitária. Isso mostra que a tendência comunitária (tribal), o presenteísmo e o paradigma estético podem potencializar e ser potencializados pelo desenvolvimento tecnológico. Podemos ver nas comunidades do ciberespaço a aplicabilidade do conceito de socialidade tribal, presenteísta e estética, definido por ligações orgânicas, efêmeras e simbólicas. A cibercultura, em todas as suas expressões é, precisamente, esta "reliance" social potencializada pela tecnologia micro-eletrônica. Como mostra Maffesoli, a socialidade pode efetivamente, "...caminhar lado a lado com o desenvolvimento tecnológico, ou mesmo ser apoiada por ele".
Podemos propor como hipótese, que as novas tecnologias de comunicação atuam como fatores de difração desse comunitarismo tribal típico da socialidade contemporânea. Isso vai caracterizar a formação de uma sociedade de comunicação estruturada através da conectividade generalizada, utilizando redes planetárias de comunicação (ciberespaço - rede de redes) em tempo real (imediato, presenteísmo). Com o ciberespaço estaríamos assistindo à uma forma crescente de agregações eletrônicas mostrando a permanência, senão o renascimento, de comunidades de base ou de comunidades orgânicas baseadas no que a Escola de Palo Alto chamou de proxemia ("proxémie"). Esse comunitarismo tribal está presente nas redes telemáticas como a Internet, os videotextos como o Minitel, os BBSs, etc. Isso mostra que a tecnologia "não chega a erradicar a potência da ligação (da re-ligação) e, às vezes, serve-lhe até de coadjuvante".
Essas comunidades virtuais do ciberespaço encaixam-se bem no que U. Hammerz, chama de "communauté sans proximité", instituindo não um território físico mas um território simbólico (embora o pertencimento simbólico não seja exclusividade das comunidades eletrônicas). No ciberespaço podemos estar sós sem estarmos isolados. As comunidades virtuais se agregam em torno de interesses comuns, independentes de fronteiras ou demarcações territoriais fixas. Mais uma vez, Maffesoli vem constatar "que lévidence tactile passe actuellement, outre les innombrables rassemblements (...), par le développement technologique (télématique, vidéotexte, micro-électronique) où se joue une interdépendance sociétaire indéniable. (...) cest au contraire la fusion groupale que prend le dessus dans lâge esthétique".
A sociedade contemporânea, ajudada pela tecnologia, mergulha nessa dimensão da socialidade da qual nos fala M. Maffesoli. Podemos dizer que na cultura contemporânea, as tecnologias potencializam uma "comunicação-comunhão" onde "lindividu ici sabolit en tant que tel pour participer à une communauté, quelque peu mythique certes, dont limaginaire nest pas sans effet au quotidien, en particulier parce quelle accentue la communication sans objet spécifique : la communication pour la communication".
É interessante notarmos também que a tecnologia moderna foi associada ao expoente da racionalidade, da objetividade, da austeridade, sendo assim, oposta a toda e qualquer forma de socialidade (o emocional, o subjetivo, o dionisíaco). Maffesoli aponta isso muito claramente no prefácio de um número especial da revista francesa "Sociétés" sobre a tecnosocialidade ("technosocialité"). Ele afirma: "il peut sembler paradoxal de penser, dans un même mouvement, la technique et la socialité. Cest pourtant ce paradoxe que ce numéro de Sociétés entend poser". No entanto, por mais paradoxal que possa parecer, a tecnologia contemporânea é um dos fatores mais importantes de formação dessa socialidade pós-moderna. O estranhamento atual em relação à técnica advém justamente dessa simbiose bizarra entre a socialidade, que recusa a positividade utópica e a racionalidade industrial, e as novas tecnologias que são a expressão mesma dessa positividade e dessa racionalidade.
A cibercultura contemporânea mostra que é no coração mesmo da racionalidade técnica que a socialidade aparece com força e ganha contornos definidos. Como afirma Maffesoli, "aux divers procès daffolement, sportifs, politiques, religieux, musicaux, sont ici pour témoigner de la perdurance de laspect par au moins non rationnel dans nos sociétés (...).". Talvez estejamos vivendo uma reversão do processo de isolamento individualista moderno, buscando, pelas tecnologias (o que é estranho) uma nova forma de agregação social (eletrônica, efêmera e planetária), o que chamo de agregação eletrônica. A cibercultura, esse "estilo" da cultura técnica contemporânea, é o produto sociocultural da sinergia entre a socialidade estética contemporânea de que nos fala Maffesoli e as novas tecnologias micro-eletrônicas. Como mostra o sociólogo francês, "...aussi paradoxal que cela puisse paraître, nous pouvons établir une étroite liaison entre o développement technologique et lamplification de lesthétique. La technique quavait été lélément essentiel de la réification, de la séparation, sinverse dans son contraire, et favorise une sorte de tactilité, une expérience commune".
A socialidade caótica e fractal vai ser alimentada pelas tecnologias micro-eletrônicas numa espécie de "harmonie conflictuelle", ajudada pelo politeísmo de valores e pelo excesso de imagens. A profusão (excesso) de imagens e de tecnologias da imagem pode ser entendida aqui, a partir da análise do barroco enquanto "forma" social contemporânea. Para Maffesoli, essa profusão de imagens (de todos os gêneros) está na base da "baroquisation" do mundo, exprimindo aqui, o caldo de cultura multiforme que constitui as sociedades ocidentais. Essa "ambiance" barroca está presente de forma radical no culto quase mágico em relação aos objetos técnicos, "que soit la télévision, le vidéotex, la micro-informatique et autre télécopie, tous raccourcissent les temps, annihilent le futur, et sont promoteurs dun instant éternel". Tokyo, Times Square, Beaubourg ou Piccadilly Circus mostram bem essa "pregnância" das imagens e a barroquisação estética da cultura contemporânea.
A Ciber-Socialidade.
Hoje em dia nós vemos o prefixo "cyber" (ou "ciber") em tudo : cyberpunk, ciber-sexo, ciberespaço, ciber-moda, ciber-raves, etc. Cada expressão forma, com suas particularidades, semelhanças e diferenças, o conjunto da cibercultura. As tribos cyberpunks, as comunidades virtuais das redes informáticas (Minitel, BBS, Internet), o hedonismo e o presenteísmo das "raves" (festas "tecno"), o fanatismo tribal dos adeptos dos jogos eletrônicos, o ativismo rizomático e político-anarquista dos militantes eletrônicos (hackers, crackers, cypherpunks...) entre outros, mostram como os elementos que compõem a socialidade (que formam o "mundo da vida") afetam o "mundo da técnica".
A contracultura dos anos 70, por exemplo, foi um movimento contra a cultura déliante (Bolle de Bal) da modernidade. Esta contracultura refutava a tecnologia pois essa encarnava o símbolo maior do totalitarismo da razão científica, a causa principal da racionalização dos modos de vida e da dominação da natureza através da urbanização e industrialização das cidades ocidentais. As diversas expressões da cibercultura tomam por herança esta contracultura e atualizam-na. A cultura digital herda o ativismo dessa contracultura mas não recusa a tecnologia.
Fruto da geração X, a sociedade contemporânea aceita a tecnologia a partir de uma perspectiva crítica, lúdica, erótica, violenta e comunitária. Nesse sentido, as comunidades virtuais, os zippies, e os ravers mostram bem esse vetor de comunhão e de partilha de sentimentos, hedonista e tribal, enquanto os hackers, os tecno-anarquistas e os cypherpunks mostram a contestação do sistema tecnocrático, o desvio e a apropriação tecnológica. Aqui nós podemos compreender como, a partir da análise da socialidade contemporânea proposta por Michel Maffesoli, a cibercultura constitui-se como uma "ciber-socialidade" ou seja, como uma estética social alimentada pelas tecnologias do ciberespaço.
A cibercultura forma-se precisamente da convergência entre o social e o tecnológico, sendo através da inclusão da "socialidade" na técnica que ela adquire seus contornos mais nítidos. Não se trata obviamente de nenhum determinismo social ou tecnológico e sim de uma processo simbiótico onde nenhuma das partes determina irreversivelmente a outra. Da mesma forma que a socialidade pós-moderna se diferencia da sociabilidade moderna, as tecnologias micro-eletrônicas (digitais) agem (em forma e em conteúdo) de forma distinta das tecnologias eletro-mecânicas (analógicas). Todo o desafio sócio-técnico da cultura contemporânea está na passagem da sociabilidade moderna à socialidade pós-moderna e na substituição das tecnologias analógicas pelas tecnologias digitais.
A tecnologia, que foi o instrumento principal da alienação, do desencantamento do mundo (Weber) e do individualismo burguês vê-se investida pelas potências da socialidade. A cibercultura que se forma sob os nossos olhos mostra, para o melhor ou para o pior é bom que fique claro, como as novas tecnologias estão sendo, efetivamente, utilizadas como ferramentas de convivialidade e de formação comunitária, perspectivas essas, principalmente em se tratando da tecnologia, colocadas à parte pela modernidade (ativistas, terroristas, pedófilos, anarquistas, ONGs...). A cibercultura é a socialidade que se apropria da técnica.
Parece que a geração 90 já está habituada ao multimídia, à realidade virtual e às redes telemáticas. Ela não é mais literária, individual e racional, mas simultânea, como diria McLuhan, presenteísta, tribal e estética como afirma Maffesoli e "simulacro" dela mesma como nos explica Baudrillard. Ela se compõe como um "zapping" de signos, como apropriação de "bits" e de "bytes" num espaço-tempo em profundas transformações. A cibercultura aceita assim o desafio da sociedade de simulação e joga ("samplings", "zappings") com os símbolos da sociedade do espetáculo.
A cibercultura não pertence mais à sociedade do espetáculo, no sentido dado a essa pelo situacionista francês Guy Debord. Ela é mais do que o espetáculo, configurando-se como uma espécie de manipulação digital do espetáculo. Para Debord o espetáculo é a representação do mundo através dos mass media. Ora, a cibercultura se parece mais como uma cultura que emerge da simulação do mundo: ela surge com os media digitais, ou seja, com as redes telemáticas, com o multimídia interativo, com a realidade virtual.
O digital vai "arraisonner" (Heidegger) a natureza não mais no sentido de extrair matéria prima e energia, mas na forma de tradução digital dessa natureza (processos de simulação os mais diversos desde o crescimento de plantas até campos de batalha como a Guerra do Golfo). O que vale agora não é mais a natureza mas a simulação da Natureza. A cibercultura toma assim a simulação como a via de apropriação do real, enquanto o espetáculo da tecnocultura moderna se apropria do real por meio da representação do mundo (televisão, cinema, fotografia).
Mesmo se cibernética (do grego "Kubernetes") significa controle e pilotagem, a cibercultura não é o resultado linear e determinista de uma programação técnica do social. Ela parece ser, ao contrário, o resultado de uma apropriação simbólica e social da técnica. O que vai caracterizar essa cibercultura nascente não é um determinismo tecnocrático mas uma sinergia entre a socialidade contemporânea e a técnica. Não se trata mais de excluir a socialidade, e tudo que ela tem de trágico, violento, erótico ou lúdico, como inimiga de uma sociedade racional, técnica e objetiva. A cibercultura não é uma "cibernetização" da sociedade mas, ao contrário, a "tribalização" da cibernética.
Se nós retornarmos à análise formista e fenomenológica de Simmel e Maffesoli, poderíamos dizer que a forma "ciber" (tecnologias do ciberespaço) vai manter uma relação dialógica com as conteúdos da vida social contemporânea (a socialidade). Todo o sonho da modernidade foi concentrado na perspectiva racionalista e funcionalista da vida, na dominação da natureza e no controle das "pulsões selvagens". Contraditoriamente, é por uma atitude dispersa, efêmera, erótica e lúdica que a socialidade contemporânea se apropria das novas tecnologias. Uma imbricação entre a socialidade (a partir da sociologia de M. Maffesoli) e a técnica contemporânea (transformada em instrumento convivial); aí está o que parece caracterizar a ciber-socialidade.
Notas:
Ver Lemos, A., La Cyberculture. Les nouvelles technologies et la société contemporaine., Tese de Doutorado., Paris V - Sorbonne, Paris, França, 1995.
Sobre o ciberespaço ver: Benedikt, M (ed). Cyberspace. First Steps., MIT, 1992., Lévy, P., LIntelligence Collective. Pour une Anthropologie du Cyberspace. Paris, La Découverte, 1995., Lemos, A., As Estruturas Antropológicas do Ciberespaço., in TEXTOS n.35, FACOM/UFBa., 1996.
Sobre os cyborgs ver, Lemos, A., A Página dos Cyborgs., in <http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos>.
Ver Lyotard., J-F., La Phénoménologie., Paris, PUF, 1959., p. 7.
Lyotard, J-F., op.cit., p.7
Ver Simmel, G., La Tragédie da la Culture, Paris, Rivages, 1988.
Simmel, G., Philosophie de La Modernité., Paris, Payot, 1990., p.229.
Para Simmel, a vida tende a se desenvolver no plano dos valores vitais, enquanto vida ("Mehr Leben") e tornando-se mais do que a vida, superando-a ("Mehr-Als-Leben"). Sobre a obra de Simmel ver Jankélévitch, V., Georg Simmel, philosophe de la vie., in Simmel, G., La Tragédie da la Culture, op.cit.
Por exemplo, em todos os objetos técnicos nós podemos ver como esses são, ao mesmo tempo, limite e possibilidade de manifestação da vida social.
Podemos ver aqui algo da "dépense" de que nos fala Bataille. Ver Bataille, G., La Part Maudite., Paris, Seuil,
Sobre a teatralidade quotidiana ver Goffman, E., La Mise en Scène de la Vie Quotidienne., Paris, Minuit, 1973.
Ver Maffesoli, M., A Conquista do Presente. RJ., Rocco., 1984.
Ver Baudrillard, J., A Sombra das maiorias silenciosas. O fim do social e o surgimento das massas., SP, Brasiliense, 1985.
Ver Deleuze, G., Guattari, F., Capitalisme et Schizophrénie. Milles Plateaux., Paris, Minuit, 1980.
Os "zippies" (Zen Inspired Pagan Professional) são neo-hippies que utilizam as novas tecnologias como fonte de (re)aproximação comunitária e de busca da espiritualidade. Já os "ravers" são os participantes das "raves parties", festas tribais, cadenciadas pela música tecno-eletrônica. Ver Lemos, A. , Ciber-rebeldes., in Guia da Internet .BR, RJ, Ediouro, 1996 e "A Cultura Cyberpunk"., in TEXTOS, n.29, Facom/UFBa, 1993.
Ver Maffesoli, M., "A Conquista do Presente..."., op.cit.
Ver os trabalhos de S. Proulx no Canada ou de J. Perrault e Alain Gras na França.
Chats são fóruns (muitas vezes temáticos - paquera, brasil, hacker, sexo, etc.) de bate papo on-line e em tempo real. Os MUDs (Multi User Dungeons) são jogos on-line (tipo "role play games") onde os participantes criam mundos e personagens imaginários através de uma ficção construída através da escrita (alguns são gráficos), também em tempo real. Sobre os MUDs e Chats enquanto comunidades virtuais ver, Rheingold, H., Virtual Communities., Addison-Wesley, 1993.
Maffesoli, M., O Tempo das Tribos. O declínio do individualismo nas sociedades de massa., RJ., Forense, 1987.
Maffesoli, M., La Transfiguration du Politique. La Tribalisation du Monde., Paris, Grasset, 1992, p.17.
Durkheim, E, Les Formes Elémentaires de la Vie Religieuse., Paris, PUF, 1978., Weber, M, Economie et Société., Paris, Plon, 1971., Bolle de Bal, M., La Tentation Communautaire. Les paradoxes de la reliance et de la contre-culture., Bruxelas, Ed. De lUniversité de Bruxelles., Bruxelas, 1985.
Estética aqui deve ser compreendida, afirma Maffesoli, como "Gesamtkunstwerk", como obra de arte total. Ver Maffesoli, M., Au Creux des Apparences. Pour une Ethique de lEsthétique., Paris, Plon, 1990., p.12.
Maffesoli, M., O Tempo das Tribos... op.cit, p.110.
Sobre a Escola de Palo Alto ver, Watzlawick, P., La realité de la realité. Confusion, désinformation, communication. Paris, Seuil, 1978.
Maffesoli, M., O Tempo das Tribos..., op.cit., p. 61.
Sobre as comunidades virtuais ver Lemos, A., Les Communuatés Virtuelles., in Sociétés, n°45, pp. 253-261, Paris, Dunod, 1994.
Maffesoli, M., Au Creux des Apparences..., op.cit., p.45.
Maffesoli, M., Au Creux des Apparences..., op.cit., p. 286.
Maffesoli, M., Préface., in Sociétés, "Dossier Technosocialité"., n. 51, Paris, Gauthier-Villars, 1996., p.1.
Maffesoli, M., La Transfiguration du Politique. La tribalisation du politique., Paris, Grasset, 1992., p. 100.
Maffesoli, M., La Transfiguration du Politique..., op.cit., p. 255.
Maffesoli, M., Au Creux des Apparences..., op.cit., p.160.
Ver o interessante livro, Coupland, D., Génération X., Paris, Robert Laffont, 1991.
Lemos, A., La Culture Cyberpunk, Le Cauchemar de la Modernité., in Congrès International de Sociologie, Paris, Sorbonne, 1993. Ver Também Lemos, A., A Cultura Cyberpunk., op.cit.
Nesse processo supera-se a "natureza" naquilo que Negroponte chama de substituição dos "átomos" pelos "bits". Ver Negroponte, N., A Vida Digital., SP, Cia das Letras, 1995. Ver também Manzini, E., Artefacts., CGP, Paris, 1991.
Para o melhor e para o pior, é bom que fique claro. Os diversos fundamentalismos religiosos, os grupos neonazistas, as redes de pedofilia, entre outras formas de agregação tribal, emocional fazem parte também dessa socialidade contemporânea.
McLuhan, M., La Galaxie Gutenberg. La genèse de lhomme typographique., Paris, Gallimard, 1967.
Debord, G., La Société du Spectacle., Paris, Gallimard, 1992.
Ver Heidegger, M., "La Question de la Technique", in Essays et Conférences., Paris, Gallimard, 1954.
Eu uso o termo "tecnoculture" para identificar a cultura técnica moderna baseada na eletro-mecânica e nas ideologias da modernidade. Obviamente, num sentido lato, a cibercultura é uma "tecnocultura". Essa tipologia, mesmo que insuficiente, pode nos ajudar a discernir as diferenças entre as duas.
Morin, E., La Méthode I. La Nature de la Nature., Paris, Seuil, 1977.
Illich, I., La Convivialité., Paris, Seuil, 1973.
André Lemos é Doutor em Sociologia pela Paris V, Sorbonne. Professor Adjunto da Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da FACOM/UFBa.