Serge Moscovici tratou desse assunto no seu excelente "La société contre nature". O que causa a irrupção do gênero humano, e sua supremacia sobre os demais animais é justamente a possibilidade, em construindo a cultura, de elevar-se acima da natureza e para além dela. O processo de "cyborgização" contemporâneo nada mais é que a continuação inelutável dessa ordem à parte formada pelo homem, de sua saída da natureza na construção dessa "segunda ordem artificial".
Analisando alguns trabalhos de antropólogos e paleontólogos, Moscovici mostra , que em nenhuma fase de sua evolução, o homem esteve dependente apenas do orgânico ou do instintivo. A sociedade constitui-se justamente na afirmação de sua independência em relação a natureza (irracionalidade, acaso, animalidade, instintos, etc.), numa posição de defesa contra as intempéries do mundo natural. A sociedade é, nesse sentido uma "contra natureza". A questão do artificial se descola assim de uma possível dicotomia com o natural pois a sociedade e o homem se formam no processo de artificialização do mundo. Assim, "l'homme sans art, sans technique gestuelle et mentale, nous est inconnu et inconnaissable" (1).
O italiano Ezio Manzine (2) mostra, com precisão, que toda ação humana se desenrola nos fatos culturais que, por sua vez, tem como característica essencial a artificialidade. O artificial é tudo aquilo produzido pelo homem e que não tem por si mesmo a possibilidade de se auto-reproduzir (auto-poiético) ou de criar um gênero. Dessa forma, a história do artificial e da humanidade coincidem plenamente, já que "pour l'homme, produire de l'artificiel est une activité absolument naturelle"(3). O artificial, longe do que imaginamos no senso comum, é profundamente humano. Isso posto, a dicotomia entre o artificial e o natural perde sentido e a questão do cyborg pode ser colocada como estrutural da própria humanidade. É nessa perspectiva que deveremos pensar a "cyborgização" da cultura contemporânea.
O devir da humanidade seria assim um "devir-cyborg". O primeiro homem, que de uma pedra faz uma arma e um instrumento, é o mais antigo ancestral dos cyborgs. Bernard Stiegler(4), utilizando-se dos estudos de André Leroi-Gourhan(5), mostra como a formação do homem e da técnica se estabelece num processo simbiótico, onde não se sabe ao certo se o homem produz ou é produzido por ela. A gênese do Homo Sapiens é tributaria da gênese da técnica. Leroi-Gourhan propõe analisar a técnica como uma tendência universal e determinante no processo evolutivo e zoológico do homem (inspirado pela idéia de evolução em Bergson). A técnica é uma solução zoológica da espécie humana na sua confrontação com a natureza(6). A tecnicidade humana aparece assim como uma tendência universal e hegemônica.
O fenômeno técnico é a primeira característica do fenômeno humano, já que a antropogênese coincide (de forma simbiótica) com a tecnogênese. O homem não pode ser definido, antropológica e socialmente, sem a dimensão da técnica. Técnica é arte (tekhnè) de construção da vida. A técnica é então um caso específico e particular da zoologia, na medida em que o fenômeno técnico aparece como uma solução para a relação entre a matéria viva (orgânica) e a matéria inerte (inorgânica), constituindo-se como "matéria inorgânica organizada". Como mostra claramente Stiegler, "la tendance ne vient pas simplement d'une force organisatrice qui serait de l'homme (...) elle s'opère par sélection de formes dans un rapport de l'être vivant humain à la matière qu'il organise et par laquelle il s'organise, où aucun des termes du rapport n'a le secret de l'autre"(7). A cultura, como tragédia entre a "subjetivação" do objeto e "objetivação" do sujeito(8), se constitui no coração do fenômeno técnico.
A "corticalização", que vai definir o homem que nos somos hoje, se introduz desde as primeiras armas e ferramentas. Dessa forma não poderíamos imaginar "que l'homme soit opérateur en tant qu'inventeur, mais, bien plus tôt, en tant qu'inventé".(9) André Leroi-Gourhan afirma que "l'apparition de l'homme est l'apparition de la technique. C'est l'outil, c'est à dire la tekhnè, qui invente l'homme et non l'homme qui invente la technique"(10). É na exteriorização "tecno-lógica" que a mão vai pedir o instrumento, a prótese. O "gesto" vai, por sua vez, induzir a fala. Assim, "l'outil pour la main et le langage pour la face sont deux pôles d'un même dispositif"(11).
Para Stiegler, a hipótese de que o homem inventa a técnica e é por ela inventado, mina o pensamento tradicional da técnica de Platão a Heidegger. O homem não seria simplesmente um "demiurgos", e a técnica mais que um "modo de desvelamento". O artifício é ao mesmo tempo o resultado da antecipação e da exteriorização (para Stiegler, a questão do tempo). Ele é a condição mesma de toda antecipação e exteriorização, já que "la pro-thèse n'est pas un simple prolongement du corps humain, elle est la constitution de ce corps en tant qu'humain"(12).
O que é importante ressaltar aqui é que a formação do córtex, da técnica e da linguagem estão imbricadas numa co-evolução zoológica da espécie humana. Como a técnica está presente no surgimento do homem e da linguagem, toda atividade técnica é uma atividade simbólica. Como afirma Stiegler, "il y a langage dès qu'il y a technique, et donc que l'activité technique et l'activité symbolique sont indissociables..."(13). A evolução do córtex vai tirar proveito do progresso de adaptação locomotiva do homem, ao invés de ser a simples causa. Ela é assim, co-determinada pela exteriorização, pelo caráter não-genético dos instrumentos. Para Stiegler, "il y aurait une double émergence du cortex et du silex, une convention de l'un à l'autre"(14).
A essência da natureza humana se forma num processo que poderíamos chamar de "desnaturalização" do homem, a partir do surgimento da técnica pré-histórica. Num primeiro momento, a técnica e o homem fundam-se reciprocamente. Com a formação do córtex, a técnica se desenvolve fora de qualquer determinação genética e/ou zoológica, indo, pouco à pouco se desliga ndo da genética. A técnica evolui então, independente, como um "modo de existência" (Simondon) próprio aos objetos técnicos (15).
REFERENCIAS
1. Moscovici, S., "La Société contre Nature"., Paris, 10/18, 1972., p.30.
2. Manzine, E., "Artefacts . Vers une Ecologie de l'Environnement Artificiel", Paris, Centre Georges Pompidou, 1991.
3. Manzine, E., op.cit., p. 44.
4. Stiegler, B., "La Technique et le Temps. I.La faute d'Épiméthée". , Paris, Galilée, 1994.
5. Leroi-Gourhan, A. "L'évolution des Techniques: Tome I: Homme et la Matière. et Tome II: Milieu et Technique"., Paris, Albin Michel, 1943-1971. Ver também, "Le Geste et la Parole I. Technique et Langage", Paris, Albin Michel, 1964.
6. Essa perspectiva é próxima da defendida por Spengler quando ele mostra que a técnica é uma tática vital no combate entre o homem e a natureza. Spengler, O., "L'Homme et la Technique", Paris, Gallimard, 1958.
7. Stiegler, B., op.cit., p.64.
8. Ver Simmel, G. "La Tragédie de la Culture", Paris, Rivages Poche, 1988.
9. Stiegler, B., op.cit., p.145.
10. Stiegler, B., op.cit., p.152.
11. Leroi-Gourhan, A., "Le Geste et la Parole I. Technique et Langage" , op.cit., p. 34.
12. Stiegler, B., op.cit., p.162.
13. Stiegler, B., op.cit., p.174. Essa tese mina em grande parte as teorias que vêm a técnica como uma atividade não-simbólica e mesmo contra toda simbolização humana. Para Hottois, a técnica afastaria o homem de sua morada simbólica no universo. Hottois, G., "Le Signe de la Technique. La Philosophie à l'Epreuve de la Technique.", Paris, Aubier, 1984.
14. Stiegler, B., op.cit., p.165.
15. Ver Simondon, G., "Le Mode d'Existence des Objets Techniques"., Paris, Aubier,1954.
André Lemos, PhD.
Professor e Pesquisador da Facom/UFBA.
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