CIBERCULTURA E BAIANIDADE


Salvador é uma cidade efervescente, compreendendo-se essa palavra no sentido dado por Durkheim: como o substrato de toda vida em sociedade. Aqui, a ética é uma ética do instante. Para não sucumbir à tirania de uma moral implacável e austera, a cidade criou sua própria deontologia, baseada numa ética do presente, ao mesmo tempo maleável, empática e efêmera. A baianidade é um belo exemplo da teatralidade que constrói todo o cotidiano. Poderíamos pensar que uma vida social que se organiza à partir de valores dionisíacos, como a festa e o erotismo, seria incompatível com os valores apolíneos da tecnologia. Aí está um erro freqüente de toda crítica moderna da tecnologia: pensá-la como um sistema fechado, independente da vida social. No entanto, a cultura local pode tirar proveito das novas tecnologias.

O carnaval baiano é nesse sentido um exemplo. Dodô e Osmar podem ser considerados os primeiros cyberpunks baianos. Os cyberpunks (de "cyber" et "punk"), exprimem a possibilidade de uma cibernética punk, onde o apolíneo é invadido pelo dionisíaco. Em suas mais diversas figuras (hackers, crackers, phreakers, cypherpunks, ravers, zippies), eles lutam pela liberdade de informação, pela privacidade, pela apropriação criativa, lúdica e comunitária das novas tecnologias. No fundo, os cyberpunks se apropriam da lógica tecnocrática da modernidade. A dupla Dodô e Osmar, de uma certa forma, fez o mesmo ao inventar, em se apropriando da tecnologia, o "pau" e o "trio" elétricos. O carnaval é o nosso mais belo exemplo de convivência entre valores apolíneos (a eletrônica) e os dionisíacos (a mega festa).

A cibercultura planetária (banalização da micro-informática, artes eletrônicas, Internet, multimídia, comunidades virtuais, cibersexo, criminalidade on-line, e-cash, educação on-line, etc.) é um fenômeno onde a racionalidade, embutida nas máquinas digitais, potencializa a efervescência social. Depois de dois séculos de modernidade industrial, os valores que serviam-lhe de suporte afundaram (o progresso, a razão, o mito desenvolvimentista). As ideologias não servem mais de balizadores para o quotidiano. Buscamos, e Salvador é exemplar nesse sentido, o presente, a festa, o prazer compartilhado publicamente sem grandes esperanças ou crenças inabaláveis. A tecnologia não é mais a chave de entrada no paraíso. Depois da bomba atômica, das catástrofes ecológicas, do colapso do leste europeu e de sua utopia industrial (que nos deixa hoje as "chernobis" da vida), o messianismo tecnológico não mais se sustenta.

É nesse ambiente pós-moderno que o potencial das tecnologias micro-eletrônicas encontra a "socialidade" contemporânea, produzindo a cibercultura. Essa é mais importante vista como um fenômeno social que técnico. A cibercultura não é a informatização da sociedade (embora passe por isso), mas a "tribalização" da sociedade de informação. Os exemplos são abundantes: os primeiros hackers do MIT na década de 60 nos deram a micro-informática como contestação do poderio militar e industrial dos primeiros computadores; a Internet foi criada por militares e hoje é um fenômeno de massa; os tecno-ativistas se apropriam dos computadores e das redes buscando a liberdade total no ciberespaço; os ravers e zippies renunciam à nostalgia hippie, utilizando a tecnologia para reforçar laços comunitários e alcançar os objetivos da era de Aquário; os cypherpunks lutam pela criptografia de massa e pela garantia de liberdades individuais. Estamos diante de uma verdadeira apropriação social das tecnologias micro-eletrônicas.

Embora ela seja mais forte em países ditos desenvolvidos, a cibercultura é um fenômeno mundial. Ela faz parte do processo de desmaterialização global que vive a cultura contemporânea nas suas mais diversas formas: econômica (tercearização, globalização), cultural (redes, multimídia, pós-mídias), política e social (colapso da política tradicional, do individualismo, do racionalismo). Salvador vive, de forma até mais radical, esse processo esquizofrênico de materialização (busca das necessidades básicas não atendidas) e de desmaterialização (economia da informação). Vivemos à fundo esse paradoxo da contemporaneidade que mistura materialização e desmaterialização, dionisíaco e apolíneo, passado e futuro.

Se a cibercultura planetária surge através de uma apropriação social da tecnologia, a baianidade poderá interagir com ela? Talvez. Salvador mostra incipientes sinais de cibercultura: telefones celulares, antenas parabólicas, multimídia, acesso à Internet, BBS, informatização de serviços, etc. O axé, forma genérica para expressar a energia da baianidade, pode conviver com a cibernética e ser potencializado por ela, ao invés de ser por ela trucidado (como pensa a grande maioria dos intelectuais). A micro eletrônica pode, para o melhor ou o pior, servir de instrumento catalisador de uma renovação da experiência comunitária. Tudo leva a crer, que podem surgir formas inusitadas de relação entre as novas tecnologias e a baianidade, formas essas que potencializem (como o carnaval), ao invés de destruir, a fortíssima cultura local. No dia que o Exú analógico encontrar o Hermes digital, poderemos ver o surgimento de um "ciber-axé", ou de uma "ciber-baianidade".

Esse artigo é dedicado à Paulo Guimarães, pensador do urbano. In memoriam.

André L.M. Lemos é doutor em sociologia pela Sorbonne, professor e pesquisador do Programa de Pòs-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação (FACOM), UFBA/CNPq. E-mail: lemos@svn.com.br

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