O IMAGINÁRIO DA CIBERCULTURA.
ENTRE NEO-LUDDISMO, TECNO-UTOPIA, TECNOREALISMO E TECNOSURREALISMO.
"Your
idea is crazy, but it isn't crazy enough to be true"
Neils
Bohr
O
imaginário da cibercultura é permeado por uma
polarização que persegue a questão da técnica desde
os tempos imemoriais: medo e fascinação. O que vemos hoje, com o
desenvolvimento da cibercultura (Internet, realidade virtual, cyborgs,
hipertextos, etc.), é o acirramento da querela entre o que Umberto Eco
chamou de apocalípticos e integrados[1].
O que surge nesse final de milênio é a radicalização
dos debates intelectuais sobre a cibercultura entre aqueles que são
taxados de neo-luddites (contra a euforia tecnológica) e os que
são chamados de tecno-utópicos (promotores dessa mesma euforia).
Com
o objetivo de esgotar a querela e instaurar o consenso, um grupo de
intelectuais americanos criou, em março de 1998, uma corrente de
pensamento e posicionamento em relação à tecnologia
batizada de "Tecnorealismo"; uma espécie de movimento
intelectual pelo bom senso e pela frieza nas observações e
análises sobre a cultura tecnológica contemporânea. Nem luddites
(pessimistas-apocalípticos) nem utópicos (otimistas-integrados),
os tecnorealistas, como o nome expressa, pretendem-se realistas (?), sendo a
voz da razão, da objetividade e, mais do que isso, da neutralidade. Eles
buscam encontrar a posição do meio, plantar-se no centro do
debate sobre os impactos sociais das novas tecnologias de
comunicação instaurando (impondo?) o consenso. Mais do que nunca
a questão da técnica emerge dessa mistura esquizofrênica de
amor e ódio.
Vamos
tratar aqui da polarização do imaginário social da
técnica contemporânea, tentando mostrar que o movimento
tecnorealista não passa de uma cruzada contra as posições
extremadas de otimistas e pessimistas, buscando a via racional da cibercultura.
Nesse sentido, talvez estejamos mais próximos de um tecnosurrealismo
(R.U.Sirius) do que da unanimidade da visão tecnorealista. Como vimos na
pequena digressão histórica dos primeiros capítulos
(necessária para compreendermos a origem dessa tensão), essa
polarização não é um fato novo na história
da técnica.
Neo-luddismo
e Tecno-utopia.
A
cibercultura contemporânea vai acirrar a ambigüidade ancestral que
está na origem do fenômeno técnico. Estamos hoje no fogo
cruzado entre intelectuais que associam uma postura "crítica"
com uma visão negativa da tecnologia (por exemplo Virilio, Baudrillard,
Shapiro, Postman) e aqueles ditos utópicos, que vêem nas novas tecnologias
um enorme potencial emancipatório, fonte de criação de
inteligentes coletivos, de resgate comunitário e de enriquecimento do
processo de aprendizagem (Negroponte, Lévy, De Rosnay, Rheingold).
Como
vimos essas posturas não são novas, mas fruto do desenvolvimento
da tecnologia e de seu imaginário nas sociedades avançadas. Por
um lado os neo-luddites que insistem em regular e manter sob controle
social as novas tecnologias, alertando contra o seu potencial destruidor (da
sociedade, do homem e da natureza). Por outro, os tecno-utópicos que
tentam mostrar como as novas tecnologias criam possibilidades inusitadas para a
humanidade, sendo uma espécie de panacéia contra os males da
tecnocracia moderna.
O neo-luddismo é
inspirado no movimento Luddites dos operários ingleses do
século XIX que protestavam e quebravam máquinas em plena
revolução industrial com medo de perderem seus empregos, a partir
da liderança de Ned Ludd (que deu nome ao movimento), "a revolta
dos luddites tornou-se exemplo legendário de um movimento
anti-tecnológico "[2].
O movimento começou em Nottingham em 1811 e se espalhou pelas fabricas
de Yorkshire e Lancashire continuando até 1816 quando começou a
enfraquecer. Hoje eles estão presentes na Internet com o intuito de
desacelerar os ritmos da informatização da sociedade alertando
contra os malefícios da cibercultura[3].
Um dos expoentes é o pensador francês Paul Virilio que, entre
outros livros, publicou um de entrevistas com o sintomático
título de "Cybermonde. La Politique du Pire"[4].
No site dos luddites on-line encontramos essa introdução[5]:
"Do you
loathe computers? Does advanced industrial society really annoy you? Looking
for a bike lane on the information superhighway? Luddites On-Line is the only
place in cyberspace devoted exclusively to luddites, technophobes and other
refugees from the Information Revolution. Our user-friendly graphic interface
allows you to discuss strategies for undermining the growing cybourgeoisie and
explore luddite-related links on the hated Internet. We even have t-shirts
(printed by hand of course). Feeling like roadkill on the infobahn? Tune in,
turn off and click here.
Os
tecno-utópicos, embora não reivindicando o rótulo,
são tidos como aqueles intelectuais para os quais as novas tecnologias
representam um novo patamar no desenvolvimento tecnológico do Ocidente,
abrindo possibilidades até então inexistentes de
comunicação não massificada, de acesso hipertextual
à informação e de criação de coletivos
inteligentes. Para os tecno-utópicos, as novas tecnologias de
comunicação (digital, multimodal e imediata)[6]
causam uma reestruturação das estruturas de poder vigentes
(mediático, político, social), descentralizando-o. Não
é a toa que Negroponte clama por uma "Vida Digital"[7]
e Pierre Lévy por uma "Inteligência Coletiva"[8].
Tecno-realismo.
"As
technorealists, we seek to expand the fertile middle ground between
techno-utopianism and neo-Luddism. We are technology "critics" in the
same way, and for the same reasons, that others are food critics, art critics,
or literary critics. We can be passionately optimistic about some technologies,
skeptical and disdainful of others. Still, our goal is neither to champion nor
dismiss technology, but rather to understand it and apply it in a manner more
consistent with basic human values.
Manifesto
Tecnorealista
O
movimento tecnorealista surge nos EUA com o objetivo de encontrar o caminho do
meio, alternativo tanto à tecno-utópicos como à
neo-luddites. O movimento foi criado 12 de março de 1998 a partir de um
encontro de 12 escritores e intelectuais no Bistrô Les Deux Gamins, no Greenwich
Village em Nova York. Entre os fundadores estão David Bennahum (Wired,
Spin), Brooke Shelby Biggs, Paulina Borsook (autor de
"Cyberselfish"), Marisa Bowe, Simson Garfinkel, Steven Johnson
(Feed), Douglas Rushkoff (autor de "Cyberia"), Andrew Shapiro
(Harvard Law School), David Shenk (autor de "Data Smog"), Steve
Silberman, Mark Stahlman e Stefanie Syman (Feed).
O
movimento foi criado a partir de um documento proposto por Shapiro, Shenk e
Johnson[9].
Hoje o movimento tem um site na Internet (www.technorealism.org), uma lista de
discussão (getreal-l[10])
e mais de 1500 assinantes. O movimento tecnorealista, através do seu
manifesto, expõe sua visão sobre a cultura tecnológica
contemporânea e define sua posição:
"the
heart of the technorealist approach involves a continuous critical examination
of how technologies -- whether cutting-edge or mundane -- might help or hinder
us in the struggle to improve the quality of our personal lives, our
communities, and our economic, social, and political structures. In this heady
age of rapid technological change, we all struggle to maintain our bearings.
The developments that unfold each day in communications and computing can be
thrilling and disorienting. One understandable reaction is to wonder: Are these
changes good or bad? Should we welcome or fear them? The answer is both.
Technology is making life more convenient and enjoyable, and many of us
healthier, wealthier, and wiser. But it is also affecting work, family, and the
economy in unpredictable ways, introducing new forms of tension and
distraction, and posing new threats to the cohesion of our physical
communities." [11]
O
manifesto tem oito pontos assim explicitados[12]:
1. A tecnologia
não é neutra. "Uma grande incompreensão de nosso
tempo é a idéia de que as tecnologias estão completamente
livre de influências - porque são artefatos inanimados, elas
não promovem certos tipos de comportamentos em detrimento de outros. Em
verdade, as tecnologias seguem de maneira intencional ou não intencional
as inclinações sociais, políticas, e econômicas.
Toda ferramenta proporciona para seus usuários uma maneira particular de
ver o mundo e caminhos específicos de interação com o
outro. É importante para cada um de nós considerar as
influências das várias tecnologias e procurar aquelas que refletem
nossos valores e aspirações".
2. A Internet
é revolucionária, mas não utópica. "A Rede
é uma ferramenta de comunicação extraordinária que
provê oportunidades novas para pessoas, comunidades, negócios e
governo. Como o ciberespaço se torna mais povoado a cada dia, ele
assemelha-se a uma grande sociedade em toda sua complexidade. Para todo aspecto
potencializador e iluminador da Rede, haverá também
dimensões que são maliciosas, perversas, ou bastante
ordinárias".
3. O Governo
tem um papel importante na fronteira eletrônica. "Ao
contrário de algumas reivindicações, o ciberespaço
não é formalmente um lugar ou jurisdição separada
da Terra. Os governos deveriam respeitar as regras que surgiram no
ciberespaço, eles não deveriam abafar este mundo novo com
regulamentos ineficientes ou censura; é tolo dizer que o público
não tem nenhuma soberania em relação ao que um
cidadão errante ou uma corporação fraudulenta faz on-line.
Como representante das pessoas e o guardião de valores
democráticos, o Estado tem o direito e a responsabilidade de ajudar a
integrar o ciberespaço à sociedade convencional. As
inovações tecnológicas e as questões de
privacidade, por exemplo, são muito importantes para serem regidas
apenas pelas forças do mercado. As empresas de software têm pouco
interesse em preservar padrões abertos que são essenciais para
que uma rede interativa funcione. Os mercados encorajam a
inovação, mas eles não necessariamente asseguram o
interesse público".
4.
Informação não é conhecimento. "Ao redor de
nós, a informação está se movendo mais rapidamente
e está ficando mais barato adquiri-la, e os benefícios são
manifestos. Isso dito, a proliferação de dados também é
um sério desafio e requer novas medidas de disciplina humana e
ceticismo. Nós não devemos confundir a excitação em
adquirir ou distribuir rapidamente a informação com a tarefa mais
assustadora de converter isto em conhecimento e sabedoria. Embora com o
avanço dos nossos computadores, nós nunca deveríamos
usa-los como um substituto das nossas próprias habilidades cognitivas
básicas de consciência, percepção,
argumentação e julgamento".
5. Interligar
as escolas não as salvarão. "Os problemas com as escolas
públicas da América --fundos disparatados, promoção
social, classe inchadas, infra-estrutura deficiente, falta de padrões--
não tem quase nada a ver com a tecnologia. Por conseguinte, nenhum
aporte de tecnologia conduzirá à revolução
educacional profetizada por Presidente Clinton e outros. A arte de ensino
não pode ser reproduzida por computadores, a Rede, ou por
´educação à distância´. Estas
ferramentas já podem, claro, potencializar experiências
educacionais de alta qualidade. Mas confiar nelas como qualquer tipo de
panacéia seria um engano".
6. A Informação
quer ser protegida. "É verdade que ciberespaço e outros
recentes desenvolvimentos estão desafiando nossas leis de
proteção aos direitos autorais e à propriedade
intelectual. A resposta, entretanto, é não esmagar os estatutos e
princípios existentes. Ao invés, nós temos que atualizar
leis e interpretações antigas de forma que a
informação receba a mesma proteção que existem no
contexto das velhas mídias. A meta é a mesma: dar para os autores
controle suficiente sobre o trabalho deles de forma que eles tenham incentivo
para criar, mantendo o direito do público para fazer livre uso daquela
informação. Em nenhum contexto a informação quer
'ser livre'. Ela precisa de ser protegida".
7. O
público possui as ondas aéreas. "O público deveria
beneficiar-se do seu uso. A recente abertura do espectro digital deu margem
para o corrupto e ineficiente abuso dos recursos públicos na arena da
tecnologia. O cidadão, de forma coletiva, deveria beneficiar-se do uso
de freqüências públicas e deveria reter uma
porção do espectro para acesso público a usos
educacionais, culturais. Nós deveríamos exigir mais uso privado
da propriedade pública."
8. Compreender
a tecnologia deveria ser um componente essencial de cidadania global. "Em
um mundo dirigido pelo fluxo de informação, as interfaces--e o
código subjacente--que faz a informação visível
está se tornando uma enorme e poderosa força social. Entender as
forças e limitações e até mesmo participar na
criação de ferramentas melhores, deveria ser uma parte importante
na constituição de um cidadão envolvido. Estas ferramentas
afetam nossas vidas tanto quanto as leis e nós deveríamos
sujeita-las a um mesmo escrutínio democrático".
Realistas?
A
partir dos oito pontos várias reações surgiram no
ciberespaço como o site do "tecnosentimentalismo"[13],
que faz uma paródia do movimento clamando não por um
tecnorealismo mas por tecnosentimentalismo, ou o artigo
"tecnosurrealismo"[14]
de R.U.Sirius, editor da revista californiana (cyberpunk) Mondo 2000, tentando
mostra o delírio da imposição do realismo. Vamos voltar
mais tarde a esse ponto.
O
que pretendemos aqui é fazer uma análise crítica do
movimento a partir de suas premissas básicas e dos oito pontos
explicitados no seu manifesto[15].
O que alguns críticos vão reter dessa proposta é algo
próximo do que diz Gunn: "nós somos críticos da
tecnologia, da mesma maneira e pelas mesmas razões que outros são
críticos gastronômicos, críticos de arte ou críticos
literários."[16]
Poderíamos
começar nossa análise explorando o próprio nome do
movimento: tecnorealismo. Várias questões emergem: em meio
à falência das ideologias (os meta-relatos da modernidade)
será possível sustentar mais um "ismo"? Numa
época de profundas transformações e incertezas será
possível atingir a "realidade" das coisas, ainda mais levando
em conta as rápidas metamorfoses do fenômeno técnico? Os
tecnorealistas parecem dizer que sim ao querer instaurar um "racionalismo
realista" com pretensão à criar o consenso, na
herança do pensamento crítico frankfurtiano. A questão
aqui é epistemológica: será possível instaurar um
novo projeto racionalista em meio a uma contemporaneidade em que o real
há muito deixou de ser uma evidência em vários campos (da
física à biologia, das mídias de massa à realidade
virtual...)? Será possível instaurar o consenso? Nesse sentido,
não seria o movimento tecnorealista um resgate da perspectiva moderna
("crítica"), tentando dar um ponto final a essa suposta
infantilidade que é ser simplesmente contra ou a favor?
Para
responder a isso o movimento tecnorealista argumenta: "...o debate
sobre a tecnologia tem sido dominado por vozes extremistas, um novo, mais
balanceado consenso tem se configurado. Este documento busca articular algumas
das crenças compartilhadas por detrás do consenso, o que temos
chamado de tecnorealismo"[17].
Vejamos
então os oito pontos do manifesto.
Em
primeiro lugar é bom deixar claro que embora o movimento se pretenda
planetário (e não é a toa que ele se propaga via Internet)
ele é nitidamente americano. A questão da educação
(ponto 5) é uma resposta explícita à política
americana de interligar todas as escolas e bibliotecas à Internet. Os
oito princípios revelam também apenas o óbvio e tanto
utópicos como Luddites poderiam estar de acordo com quase todos eles.
Que
a "tecnologia não é neutra" todos sabemos. Esse alerta
foi dado há algumas décadas por pensadores como Ellul, Mumford,
Elias, Habermas, entre outros. Tanto utópicos como pessimistas
estão de acordo sobre esse princípio, sendo as conclusões
daí derivadas divergentes. Para uns a apropriação social
resolve essa não neutralidade, para outros ela é fonte de poder e
controle.
Dizendo
que a "Internet é revolucionária mas não
utópica" os tecnorealistas afirmam que as novas tecnologias
estão mudando a nossa maneira de ver e estar no mundo, mas que em si
elas não são utópicas. Ora, o revolucionário
é a essência mesma da utopia. A utopia depois de Thomas More
é o "não lugar" inalcançável, imprevisto,
ou "o" lugar, o destino último. Fundamentalmente a Internet
é utópica justamente por ser revolucionária. Mas parece
evidente que os realistas estão chamando a atenção ao fato
de não ser possível insistir que apenas uma mudança de
cunho tecnológico (o ciberespaço) possa resolver problemas
crônicos da sociedade.
A
questão da técnica é desde sempre uma questão
social. Que os "governos tenham um papel importante na fronteira
eletrônica" nos parece o mais óbvio e o mais unanime dos
argumentos. Tanto utópicos como pessimistas têm plena
consciência desse fato. Uns lutam por regulamentações
(censura, controle, normas, leis) outros pela não
intervenção total e pela regulação socialmente
sustentada, além da garantia de acesso amplo e irrestrito às
tecnologias da cibercultura.
O
quarto ponto do manifesto chama a atenção para que não
confundamos informação com conhecimento. Mais uma vez, esse
argumento faz unanimidade. Os pessimistas sabem disso ao afirmar que o que
existe no ciberespaço é uma mera circulação de
informações, sem necessariamente trazer um conhecimento articulado
sobre um determinado assunto. Os otimistas diriam que no ciberespaço
estão as informações, antes privilégios de poucos,
disponíveis à todos que, de agora em diante, teriam a
possibilidade de reuni-las a partir de caminhos próprios (hiperlinks),
construindo um conhecimento autônomo. Tanto na crítica como na
exaltação do excesso de informação, o que
está explicito é o reconhecimento de que a
informação não é conhecimento.
Da
mesma maneira que a informação não é conhecimento,
a simples ampliação do fluxo informativo não garante
melhoria na educação. Esse é o argumento do quinto ponto,
que parece também não ser muito divergente entre
apocalípticos e integrados. Os pessimistas vêem com razão a
informatização da educação apenas como uma
investida de marketing que atinge hoje várias escolas e universidades.
Estas, na maioria das vezes, contentam-se em dispor equipamentos de acesso a
Internet como um forma de modernização, sem necessariamente
causar alguma melhoria das condições de ensino, não se
preocupando com aspectos pedagógicos ou treinamentos de professores. Por
outro lado os otimistas têm consciência de que interligar escolas
não vai salvá-las, mas que é fundamental que uma escola
aproveite o manancial disponível hoje na Internet.
O
sexto ponto do manifesto é o mais polêmico e ao mesmo tempo o mais
conservador. Diferente da atitude cyberpunk que marcou o inicio da
micro-informática e do ciberespaço, pregando que "toda
informação deve ser livre", os tecnorealistas buscam
proteger a informação ("a informação deve ser
controlada"). A máxima cyberpunk nos parece muito mais
arrojada, projetiva e crítica do que a máxima tecnorealista. Os
realistas estão preocupados, com justeza, com questões como
copyright, privacidade e segurança das trocas de informação.
Mas da mesma forma estão também os pessimistas. O que torna o
ciberespaço um fenômeno social é a disponibilidade dos
internautas em fornecer livremente informações as mais diversas,
seja em listas, e-mail, grupos de discussão ou paginas Web. O que mantém
vivo o ciberespaço é a informação que circula
livremente e não a informação controlada. A generalidade
da argumentação a torna inócua (é claro que devem
existir informações livres e controladas).
O
sétimo ponto também não traz discórdias entre
utópicos ou pessimistas. Ele afirma que o público possui as ondas
aéreas e que devem utilizá-las em seu benefício com
atividades educacionais, culturais e afins. Em Technologies of Freedom[18], Ithel de Sola
Pool mostra como a utilização de emissões por ondas
aéreas ou terrestre depende da tecnologia e da estrutura social que a
organiza. Não há nada de radical ou inovador nesse ponto. O mesmo
poderia ser dito do último ponto do manifesto que afirma que
"entender a tecnologia é um componente essencial da cidadania
global". Quem poderia negar essa afirmação?
Tanto
neo-luddites como tecno-utópicos fazem coro nesse ponto. Os
primeiros vão afirmar que a tecnologia é importante, mas que pode
estar atrofiando a dimensão pública e política ao isolar
cidadãos que, de agora em diante, apenas comutam
informações binarias entre si. Já os tecno-utópicos
vão afirmar que o ciberespaço pode proporcionar aos
cidadãos uma nova espécie de "agora-eletrônica",
um espaço para formação comunitária e criação
de coletivos inteligentes, distribuindo e potencializando novas formas de
organização social. Vemos assim que não é nenhuma
novidade (ou radicalidade) reconhecer que a relação entre as
novas tecnologias e a vida social são fundamentais para o
exercício da cidadania.
Podemos
dizer que o movimento tecnorealista afirma em seus oito princípios
apenas obviedades que não necessariamente o diferencia de
utópicos ou pessimistas. Ele tenta chamar atenção para si
mesmo, criando mais um "ismo" e tentando resolver a dualidade dos que
acham tudo bom ou tudo ruim (não teríamos o direito de amar ou odiar
a tecnologia?), numa perspectiva meramente elitista, como mostra Katz[19].
O
tecno-realismo parece ser assim uma ideologia de tipo moderno que desacredita
seus opostos (rapidamente tachados de otimistas ou pessimistas) como
excessivos, forcando-os a entrar na realidade das coisas, de ver o real impacto
da tecnologia digital na cultura contemporânea. Como mostra Gunn, os
tecnorealistas querem dirigir os debates, aparar arestas e instaurar a
hegemonia[20].
O
tecno-realismo rejeita assim o visionário e a desmesura, desabonando
opiniões divergentes, neutralizando-as no suposto excesso
retórico. Como mostram alguns autores, o tecno-realismo é um
movimento próximo do legal realism de 1900 nos EUA que
pretendeu desenvolver um pensamento crítico em relação ao
mercado. A máxima parece ser: "minha argumentação
é realista, logo ela é racional, neutra, objetiva, diferente
dessas outras excessivamente utópicas ou pessimistas". É
interessante notar ainda que autores como Shapiro, Borsook ou Sparkman,
criadores do movimento, parecem em seus textos muito próximos dos
neo-luddites.
Shapiro
vai afirmar o caráter não necessariamente democrático da
rede e insiste em dizer que esquecemos a riqueza do face a face; Paulina
Borsook mostra os problemas do copyright e vai afirmar que a arte
eletrônica é plagiarismo; e R. Sparkman vai
questionar o papel do computador na escola dizendo que com ele não
há revolução na educação. Assim, parece que
o movimento tecnorealista foi formado por "neo-luddites
reformados" que, sem querer aderir à crítica radical, mas
reconhecendo certos benefícios das novas tecnologias, pretendem-se hoje
realistas. Isso beira o tecnosurrealismo.
Tecnosurrealismo.
Contrapondo
à euforia tecnorealista, R.U. Sirius (que se pronuncia "are you
sirius",
ou "você é sério") editor da revista Mondo 2000 e
cyberpunk convicto, propõe que a cibercultura já passou quatro
fases, chegando agora à tecnosurrealista. A primeira fase é
conhecida como "Nerdismo Puro", que durou de 1976 à 1988 e
caracterizou-se por uma sub-cultura da informática que pregava que toda
informação deve ser livre, que o ciberespaço é de
todos e que os computadores devem ser acessíveis e de fácil
utilização. A segunda é a "Tecno-anarquista", de
1989 à 1992, fase do amadurecimento do ciberespaço e da
celebração do caráter rizomático e anárquico
da rede. É a época do apogeu da revista Mondo 2000[21].
A terceira fase caracteriza-se pelo "Tecno-liberalismo", tendo como
expoente a revista Wired[22],
mostrando a força dos conglomerados do capitalismo pós-industrial
e a entrada da Internet na era do comercio eletrônico (e-commerce,
e-business, e-money).
Usando da sagacidade e ironia que lhe é particular, Sirius sustenta que a quarta fase da cibercultura é a do tecnorealismo, já superada (durou apenas uma semana: de 12 à 19 de março de 1998). Para Sirius todo realismo sem imaginação é mero reducionismo. E é preciso muito imaginação para viver num fluxo de informação caótico que supera em muito nossa capacidade de entendimento. Não existe assim tecnorealismo, já que não é possível, em meio a essa explosão da informação, a existência de um consenso sobre qual o método real, objetivo, imparcial de conhecermos nossa realidade socio-técnica. O tecnorealismo nasceu e morreu (ou já nasceu morto?) pelo desejo impossível de um pequeno grupo da inteligência norte-americana de encontrar, no entendimento dos impactos tecnológicos, um norte em uma época hiperbólica, uma linearidade em uma época hipertextual. Fundam uma espécie de "tecnopomposidade", como mostra Katz[23]. No fundo o problema, como afirma Sirius, não está na escolha legítima entre ser um otimista ou um pessimista. O real problema da cibercultura está no tecnosurrealismo dos que acreditam em tudo e dos que não acreditam em nada.
[1] Eco, U., Apocalípticos e Integrados., SP, Perspectiva,
1979.
[2] Veja texto The Luddite Movement., in <http://www.webpointers.com/luddites.html>.
[3] Sobre os Luddites na Internet ver sites em anexo.
[4] Virilio, P. Cybermonde. La logique du Pire. Entretien avec
Philippe Petit., Paris Les éditions Textuel, 1996.
[5] Ver "Life was better before sliced bread"., in <http://www.ludittes.com>
[6] Lévy, P. Cyberculture., Paris, Editions Odile Jacob.,
1997.
[7] Negroponte, N. op.cit.
[8] Lévy, P., L’Intelligence Collective. op.cit.
[9] Para uma visão geral veja a FAQ em <http://www.technorealism.org>
[10] Para assinar a lista mande e-mail para <mailto:majordomo@mindshare.net> e no corpo do e-mail
escreva "subscribe getreal-l" (sem aspas)..
[11] Ver o manifesto em <http://www.technorealism.org>
[12] De acordo com o manifesto disponível no site citado
acima. Tradução do autor.
[13] Sobre o tecnosentimentalismo veja "Technofeelism. An
Overview.", in <http://www.onlinepress.com>
[14]Sirius, R.U., Techno Surrealism: Today's
Trendiest
Cyberthing., in <http://www.disinfo.com/prop/diss/prop_diss_techsur.html>
[15] Manifestos na grande rede são freqüentes: a
ética dos hackers do CCC, a independência do ciberespaço de
Barlow, o manifesto dos cypherpunks, etc.
[16] Gunn, Angela, Naive Realism: Taking on the Technorealists
Practical development of the Internet comes from doing practical things., in <http://home.zdnet.com/icom/content/columns/1998/05/techno.realists/>.
[17] Manifesto em <http://www.technorealism.org>
[18] Pool, Ithiel de Sola., Technologies of Freedom., op.cit.
[19] Katz, John., Way-New Technopomposity, in <http://www.wired.com>.
[20] Gunn, Angela., op.cit.
[21] Ver <http://www.mundo2000.com>
[23] Katz, John., Way-New Technopomposity., op.cit.