Carvanal
André Lemos
Fim de carnaval e a vida começa a
retomar a normalidade. A cidade pára. Falam de TAZ, de reversibilidade
do quotidiano e todos têm um pouco de razão. Trata-se,
evidentemente, de uma zona de autonomia temporária e de uma quebra nos
papéis rígidos quotidianos. Mas também há exageros,
já que nem tudo muda realmente e uma nova ordem se instala no caos. Na realidade, aqui em Salvador
só confirmamos a norma e a organicidade da sociedade (e isso não
é necessariamente nefasto...)
Primeiro há a ordem
sócio-policial que tenta administrar a bagunça: fecha ruas, cria
espaços alternativos, organiza a circulação de trios e
blocos, monta centros médicos... O sistema estabiliza na crescente
entropia da festa.
Segundo, a ordem psicossocial, em sua maioria,
não é tão drasticamente invertida. Na realidade acho que
não há inversão nenhuma. Quem conhece e mora em Salvador
sabe que as pessoas não são tão diferentes assim no seu
dia a dia. Aqui o cliche funciona:
o carnaval é uma forma de vida (e isso não é
necessariamente bom...).
Parece que o carnaval apenas deixa que
elas estravasem, sem culpa e sem muita vergonha, o que elas são sempre,
em maior ou menor grau. O excesso de espaço (simbólica e
fisicamente falando), o excesso de alegria (com simpatia e também
super-simpatia que vira melancolia), o excesso de fé e misticismo (que
deixa um ar zen e complacente, sem ser a tão propalada preguiça)
são exemplos da vida em Salvador antes e depois do carnaval.
Assim é o carnaval em Salvador (e
só falo desse lugar), ao mesmo tempo deregramento mas também
confirmação do que se é, consagração da
norma e do instituído. Salvador é tão bizarra que ela
escapa da visão hegemônica do carnaval. E escapa estranhamente,
já que não é inversão do dia a dia ou desordem,
como muitos afirmam ser o carnaval, mas confirmação do dia a dia
como carnavalização. Não é catarse da dor do dia a
dia já que parece não haver dor. Não é dor
acumulada e espelida como vômito festivo, mas a própria vida em
sua celebração plena.
Se não há dor, se
não há tristeza... Assim, só cabe celebrar o que se
é (e não falo sem saber das mazelas da sociedade soteropolitana,
mas de uma forma de ser, de um imaginário social que constrói a
vida local e coletiva). Não há inversão nem quebra da
ordem se não há do que se desvencilhar. Não há,
tampouco, do que se entristecer ou deprimir, já que a alegria é
um dever ser aqui. A alegria, essa insuportável alegria que nos joga na
ineficiente e, às vezes, dura necessidade da simpatia incondicional.
A existência carnavalizada de
Salvador só veste sua própria máscara no carnaval,
capitalizada por políticos, marketeiros, líderes
comunitários, músicos e outros artistas, professores
universitários, vendedores de cerveja e de acarajé que
reivindicam e gozam, todos, na tal baianidade (que não é da Bahia
mas de Salvador).
Parece que a existência
carnavalizada, tipica do quotidiano baiano, só é, por assim
dizer, tranformada em uma espécie de carnavalização da
existência (e isso não é bom, nem mau). Nesses dias de
folia, Salvador é o que é sempre, só que parodizada,
exagerada, purpurinada e vitaminada.
Mas a festa acabou. A
carnavalização da existência se foi e a existência
carnavalizada apenas recomeça, para o melhor ou o pior.